quinta-feira, novembro 12, 2009

Cariocas e africanos: novas cores nas HQs


Apesar de todo o avanço que as histórias em quadrinhos têm experimentado nas últimas décadas, aproximando-se cada vez da literatura e da linguagem adulta – deixando para trás a visão estreita de quem acha que são feitos apenas para crianças – ainda há poucas obras que dêem conta de questões “sérias“ como raça, miscigenação, racismo e mesmo da África enquanto continente, em oposição à visão colonialista da terra exótica, cheia de animais selvagens, tribos canibais, mistérios e perigos.

Essa lacuna vai aos poucos sendo preenchida com o lançamento de álbuns como os recém-chegados às livrarias Negrinha (Desiderata) e Aya de Yopougon (L&PM).

O primeiro, assinado por Jean-Christophe Camus (roteiro) e Olivier Tallec (arte), é em parte baseado na história da mãe e da avó de Camus, brasileiras que viviam no Rio de Janeiro do anos 50.

Já Aya de Yopougon, de Marguerite Abouet (roteiro) e Clément Oubrerie (arte), retrata a juventude da primeira, natural da Costa do Marfim, que vive em Paris já há algum tempo. No livro, Marguerite mostra um pouco da sua juventude no país situado na costa oeste do continente africano. O álbum da L&PM é o primeiro de uma série de quatro, a serem lançados posteriormente.

Ao seu modo, cada um deles oferece sua visão de negritude de acordo com o ambiente cultural e temporal em que as suas histórias se desenrolam: Negrinha, no Rio dos anos 50 e Aya, na Costa do Marfim, em 1979.

Jean-Christophe Camus, como ele mesmo diz na entrevista ao lado, fez Negrinha como parte de suas pesquisas sobre a sociedade brasileira, temas que lhe interessam pela ligação parental. Seu pai foi ninguém menos que o premiado cineasta francês Marcel Camus (1912-1982) , autor do clássico filme Orfeu do Carnaval (1960, Palma de Ouro em Cannes e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro).

Fascinado pela cultura afro-brasileira, Marcel acabou gerando Jean-Christophe de sua união com a brasileira Lourdes de Oliveira. Em Negrinha, ele conta um pouco como era a vida de sua mãe, mulata, e sua avó, negra que trabalhava de doméstica naquele Rio de Janeiro idílico dos anos 50.

Com muito esforço, Olinda (personagem baseada na sua avó) conseguia criar Maria estudando na melhores escolas e frequentando aulas de balé entre o que restava da aristocracia carioca daquela época.

Ao desejar apenas o melhor para sua filha, Olinda a mantinha longe do Morro do Cantagalo (atual Pavão-Pavãozinho) onde nasceu. "Você não é uma negrinha; é morena, é quase branca", dizia Olinda para Maria.

Ainda assim, um dia, Maria conhece Toquinho, um menino do Cantagalo, vendendo amendoim na praia. Bom de samba, Toquinho encanta a menina, que tem pena de sua condição. Olinda, claro, faz de tudo para afastar os dois jovens.

Contudo, fica evidente o carinho do autor para com seus personagens. Mesmo Olinda, que poderia ser retratada como uma vilã, é na verdade, uma mulher pobre de boa alma, que todos os dias reza por todos os que conhece, incluindo o próprio Toquinho e Dona Ruth, a dondoca falida que ela acaba por acolher em seu próprio apartamento e ainda assim, a trata como empregada.

A arte de Olivier Tallec, baseada em fotos de família de Camus, do Rio dos anos 50 e de uma viagem que ele mesmo fez à cidade, é de encher os olhos: ensolarada, carregada de expressão.

Claro que não dá para exigir um tratado profundo sobre o preconceito racial no Brasil de uma dupla de quadrinistas franceses. Para se garantir, contudo, Camus consultou bastante Antonio Carlos Amâncio, um teórico do cinema, doutorado pela USP com uma tese sobre a representação do Brasil no cinema estrangeiro de ficção, como bem levantou Jotabê Medeiros, do jornal Estado de São Paulo.

Aya de Yopougon

Longe dos conflitos tribais, massacres e campos de refugiados que costumam ser a tônica do noticiário sobre a África, as gazelas da Costa do Marfim em 1979 só queriam saber de rebolar suas tassabas nos maquis, enquanto saboreavam alocôs com kutukus enquanto ficavam de olho nos genitôs.

Traduzindo: as meninas rebolavam suas bundas nos restaurantes ao ar livre onde se pode dançar, comendo banana frita em rodelas com vinho de palma, enquanto ficavam de olho nos rapazes com dinheiro para gastar. Assim é Aya de Yopougon: uma viagem divertida e leve à uma África colorida, sem fome ou guerras. Uma boa novidade para quem procura diversidade nas HQs.

No fim do livro, a autora incluiu uma série de “extras“ sobre a cultura, a culinária e a moda da Costa do Marfim. De início, há um pequeno léxico para entender melhor a história, com várias gírias locais como dye (bêbado), bodjô (bunda) e dêh (exclamação). Segue um guia ilustrado de como usar panos coloridos como sáris ou amarrados na cabeça. Outra dica útil (e ilustrado) ensina as meninas a rebolar a tassaba (bunda) ao caminhar. Seguem receitas de gnamankudji (suco de gengibre, afrodisíaco) e sopa de amendoim, que leva carne de boi, pasta de amendoim e especiarias.

Negrinha / Jean-Christophe Camus e Olivier Tallec / Trad.: Fernanda Abreu / Desiderata / 104 p. / R$ 44,90

Aya de Yopougon / Marguerite Abouet e Clément Oubrerie / Trad.: Júlia da Rosa Simões / L&PM / 112 p. / R$ 38


ENTREVISTA: JEAN-CHRISTOPHE CAMUS

Não fosse o fato de Negrinha ser publicada no Brasil, o franco-brasileiro Jean-Christophe Camus correria o risco de passar o resto de sua vida como um ilustre desconhecido na terra-natal de sua mãe – e onde seu pai, o cineasta Marcel Camus, realizou o clássico Orfeu Negro (1959),filme premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Ensinado pelo pai desde criança a admirar e respeitar o povo negro, Camus é fã da música brasileira e é leitor de Gilberto Freyre. Nascido em 1962, é diretor artístico da editora francesa Éditions Delcourt desde sua fundação, em 1986. Em 1990, fundou o escritório de design gráfico Trait Pour Trait, ao lado de Guy Delcourt.

P: Lendo Negrinha, percebe-se que os autores têm um olhar muito terno para seus personagens, incluindo aqueles que poderiam ser retratados como “vilões“, como Olinda. Isso foi uma escolha consciente ou simplesmente aconteceu assim?

JC CAMUS: Foi uma escolha consciente. Olinda sabe que deve se sacrificar para prover uma vida melhor para sua filha. Ela daria sua vida por Maria. Ela é sua razão para viver, trabalhar, rezar. Queríamos uma mulher com uma face boa e má (ao mesmo tempo), com dúvidas, como qualquer pessoa. Às vezes, os pais precisam fazer escolhas ruins pelo bem dos seus filhos. É parte da dificuldade de ser mãe ou pai. Tentamos fazer o melhor – e às vezes, estamos errados.

P: Por que (a história é ambientada no) Rio de Janeiro dos anos 50? Foi a aura mítica? Mais fácil de encontrar referências fotográficas? Sua mãe é brasileira. Ela era uma jovem no Rio dos anos 50 como Maria?

JC CAMUS: Sim, minha mãe e minha avó tinham mais ou menos essas idades (dos personagens) nos anos 50, quando moravam em Copacabana. Essa é a única razão do período escolhido. Eu dei à ele (Olivier Tallec) algumas fotos da minha família daquela época e ele buscou ainda outras fotos e foi ao Rio também. Também mostrei a ele o maravilhoso filme Rio, 40 Graus (1955). Negrinha é inspirado na história da minha mãe e avó, mas toda a parte do Toquinho e da favela é ficção. Minha mãe nunca foi à favela. Mas minha avó ficava muito orgulhosa quando pensavam que ela era babá da minha mãe, até que ela se tornasse adulta!

P: Negrinha aborda com rara sensibilidade temas cruciais do Brasil, como raça e miscigenação. Aqui, o racismo nunca foi aberto, como na África do Sul ou EUA, e o senhor se mostrou muito a par de como as coisas se dão por aqui. Foi sua mãe quem te contou sobre isso?

JC CAMUS: Minha mãe nunca falava disso, mas estou a par disso já há muito tempo. Nasci e vivo na França, mas me sinto brasileiro também. Estou tentando entender a miscigenação brasileira. Li há alguns anos o livro do Gilberto Freyre, Maîtres et esclaves. Acho que é Casa Grande & Senzala em português. Estou sempre pesquisando e tentando entender minhas raízes. O livro é parte disso. Já estive no Brasil de férias, mas nunca morei por aí. Quem sabe um dia? Mas já estive em Salvador por dez dias, no Carnaval. Adorei! Meu pai (Marcel Camus) era diretor (de cinema). Ele era branco, mas fez um filme, Orfeu Negro, só com atores negros. Ele adorava o povo e a cultura negras. Sempre dizia para mim e meu irmão: ‘negro é lindo, cabelo pixaim também‘. Ele dizia que devemos ter orgulho de nossa parte negra.

P: Você e Olivier estão agora trabalhando numa continuação para Negrinha?
JC CAMUS: Sim, estamos trabalhando em Negrinha 2. Se der tudo certo, vai para as livrarias francesas em setembro ou outubro de 2010. Se não mudarmos nada na história também, Maria voltará à favela e ainda fará uma viagem à Minas Gerais. Mais não conto, para não estragar a surpresa!

4 comentários:

Franchico disse...

O céu é o limite para Asterix:

Patrulha Acrobática Francesa desenhou Asterix no céu

http://www.universohq.com/quadrinhos/2009/n13112009_05.cfm

Franchico disse...

No Cad 2 de amanhã (sábado), página dupla sobre o Gênesis de Robert Crumb, além de uma geral na carreira do doidão e um pequeno furo sobre o quadrinista. Nããão percam, doidões....

Franchico disse...

Luciano Matos dá o serviço completo do que rolou no festival Calango, em Cuiabá.

http://www.nemo.com.br/elcabong/?p=2192

Vale a pena dar uma boa lida!

Franchico disse...

Adicionei aí do lado o link pro blog do meu velho amigo e parceiro de longa data Leonardo Leão, o Lionman, das bandas Mizeravão e Morticia.

Altamente recomendado.......