sexta-feira, janeiro 11, 2013

ENTREVISTÃO ERASMO CARLOS - 50 ANOS DANDO NO COURO

Diretamente dos arquivos do Rock Loco, entrevistão com Erasmo Carlos feita em maio de 2012, na ocasião do lançamento do DVD 50 Anos de Estrada Ao Vivo no Theatro Municipal. A matéria foi publicada no Caderno 2+ do jornal A Tarde em 30 de maio de 2012, mas não lembro por que não a publiquei aqui antes. Lembrei dela e achei que seria muito egoísmo guardar esse belo material só pra mim. Foi minha segunda entrevista com o Tremendão e, como sempre, ele esbanjou sabedoria e generosidade - para não falar da simpatia com que tratou este humilde e honrado repórter. A primeira foi um ano antes, quando ele lançou o álbum Sexo (2011). Segue a transcrição completa do áudio da entrevista por telefone.


Uma trajetória tão espetacular quanto a de Erasmo Carlos merece uma comemoração à altura. O CD duplo / DVD 50 Anos de Estrada Ao Vivo no Theatro Municipal cumpre a missão com louvor, sem ceder à nostalgia ou emoções baratas.

Gravado no suntuoso palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o show traz o Tremendão em uma bela revisão de carreira, acompanhado de banda enxuta, porém afiadíssima, que inclui o power trio Filhos da Judith (Luiz Lopez, Pedro Dias e Alan Fontenele), Dadi Carvalho (na guitarra, uma raridade), Billy Brandão (guitarra), José Lourenço (maestro e teclados) e, em algumas faixas, a Orquestra de Cordas do Municipal.

Mesmo que às vezes pareça meio tímido no palco, Erasmo esbanja seu carisma natural e está com a voz em forma.

Os convidados são uma atração à parte: Marisa Monte (com quem canta Mais Um na Multidão, faixa que compuseram juntos) e claro, um Roberto Carlos mais solto e  à vontade do que em 30 e tantos anos de especiais na Globo, cantando Parei na Contramão e É Preciso Saber Viver.

Desnecessário dizer que é o momento mais emocionante e especial do show, até por que, como Erasmo confirma nesta entrevista, não houve roteiro, o que gerou um ou dois divertidos momentos de desconcerto entre os velhos amigos.

Uma linda coleção de sucessos e o testemunho definitivo de um gênio da música popular.

Ficou satisfeito com o resultado? Com o show em si, com a direção do DVD?

ERASMO CARLOS: Senhor tá no céu! (Risos). Senhor é o Papai Noel, Dom Pedro II. Mas sim, Fiquei satisfeito sim, ficou bonito pra caramba, um dos dias mais felizes da minha vida.

Logo no início voccê diz à plateia que "nunca antes vocês viram um compositor mais feliz no palco". Você se sente mais compositor do que performer?

EC: Eu sou compositor, é minha profissão mesmo. Eu não sou cantor. Canto por consequencia de minhas composições, mas eu me considero mesmo é compositor.

Você se vê mais como compositor, então?

EC: Não, eu me vejo não: eu sou. O que eu sei fazer é música, né? Tudo o que gira em torno disso – show, cantar, gravar, dar entrevista – tudo é em função de eu ser compositor.

A coisa toda de ser um show comemorativo de 50 anos de estrada, de ser no Municipal etc - tudo isso chegou a te intimidar em algum momento? Você ainda fica nervoso antes de subir no palco?

EC: Nervoso a gente fica sempre. Em qualquer show, a gente fica. Mesmo sabendo tudo, tendo feito milhares de shows pela vida, mas é que cada dia é uma emoção diferente. cada público, cada cidade é diferente, sabe? Então isso dá a vontade que saia tudo perfeito, que não tenha problema nenhum no som, que o show ocorra tranquilo, que as pessoas entendam o amor que agente quer transmitir, que a gente consiga receber também o amor que as pessoas querem devolver, se não vai pifar nada, o instrumental... Então essa preocupação toda gera uma tensão muito grande, dá aquele nervoso na gente, que chamam de friozinho na barriga, que não é friozinho, é dor, mesmo! É dor na barriga mesmo (risos). Mas lá pela terceira música ela passa e o show caminha tranquilo.

É até uma coisa natural, é necessário para se manter atento a tudo, né?

É! Agora respondendo à sua outra pergunta, eu não sei hoje em diz o conceito que as pessoas tem do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas acontece o seguinte: quando eu comecei minha vida (artística) lá nos anos 1960, lá na Tijuca, menino sonhador, sabe, aventureiro, eu jamais imaginaria um dia poder pisar naquele palco, que é uma coisa tão grande, um templo sagrado que abriga as artes nobres, sabe? Então, eu jamais imaginaria, naquele tempo, pisar um dia no palco do Municipal – ainda mais cantando rock 'n' roll! Então, minha alegria, minha felicidade, no dia que eu fiz isso, foi inexplicável, inenarrável. Inclusive, cantar Festa de Arromba no Municipal, isso pra mim, foi a maior vitória que eu já tive na minha vida. Muito significativo pra mim. Na minha cabeça, todo mundo que eu falo em Festa de Arromba tava ali no palco comigo.

Você retomou a pegada rock 'n' roll nos últimos discos. O que motivou isso? Uma necessidade de retorno às origens, ou o senhor achou que tava na hora de mostrar a molecada como se faz? Por que tá faltando rock 'n' roll, né?

EC: É um misto disso tudo o que você falou e mais o seguinte: eu sou um compositor brasileiro, sabe? Então, você sabe que, aqui no Brasil, a gente sofre muitas influências, né? Na Inglaterra, o compositor é aquilo só. É só aquilo que tem, aquele negócio deles, lá. Eles não sabem outras coisas. Aqui, não. A gente é muito rico de influências, sabe? No Maranhão tem influência, Recife... A Bahia, então, nem se fala. Tem lá no Sul, no Centro-Oeste...

É, cada região tem suas músicas características, né?

EC: É, então, tudo isso influencia você. Assim como eu me influenciei na minha vida com todos os ritmos que apareciam... A minha estrada é assim, tão longa, que eu vivenciei o nascer de vários ritmos. Mambo, rumba, cha cha chá... Eu vi o nascer do rock 'n' roll e da bossa nova. É diferente de uma pessoa hoje em dia: "Como é que é essa tal de bossa nova?" Aí o menino vai ouvir e "Porra, é isso aí?" Ele ouve por ouvir, com o ouvido "frio" do menino de agora, sabe? Mas eu não, eu vi a magia do nascer da coisa. Eu ouvia os comentários nas ruas: "Já ouviu a música tal? Tem um cara aí que canta esquisito, com a voz baixinha, ele é desafinado pra caramba"! (Risos) As pessoas nem tinham noção. Eles confundiam a afinação de João Gilberto com desafinação. Então, essa maravilha toda, os comentários nas esquinas, os primeiros acordes novos, ia um ensinando pro outro, sabe? Era a magia do momento. Então eu vivi isso tudo, o rock 'n' roll, a bossa nova e outras coisas também. Então, hoje em dia, claro, eu sou um compositor brasileiro que sofre essas influências todas e isso me faz, de vez em quando, ir por outros caminhos. Aí daqui a pouco eu tô muito emepebista, depois faço um bolero... sei lá o que eu faço. Aí, de repente eu me toquei: porra, eu comecei minha vida cantando rock 'n' roll. Então eu deixei isso... apesar de nunca ter deixado de fazer rock 'n' roll, eu nunca mais tinha assumido mesmo a coisa. Eu sou isso. Apareci assim e vou ficar assim. E tem também isso aí que você falou. Porra, tá na hora de ensinar pros meninos o que é rock 'n' roll mesmo. Aí voltei, me dei muito bem e vou continuar.

Tava vendo o release do Arnaldo Antunes e ele diz que você surgiu apenas dez anos depois do rock 'n' roll em si. Como foi acompanhar o desenvolvimento do rock ao longo dessas décadas?

EC: Eu tive que acompanhar, né? Fui crescendo junto com ele, mas tenho que confessar que, dos anos 1970 em diante, nada mais me arrepiou, bicho. Eu parei nos anos 70 nesse lance de músicas preferidas, de me arrepiar com as músicas, de chorar pra caramba ouvindo uma música, eu parei ali. Nada me arrepiou nos anos 80, 90, 2000, hoje, nada me arrepia. Então meus discos preferidos são esses, meus rocks básicos, a bossa nova básica de João Gilberto, Marcos Valle, Tom Jobim, Vinícius, eu gosto dessas coisas assim.

O arranjo estilo 007 de Negro Gato ficou espetacular. Como surgiu?

EC: Os arranjos a gente vai fazendo... O maestro Zé Lourenço toma as iniciativas lá e todo mundo vai criando, bicho. Eu digo como é que eu quero mais ou menos a levada, não abro mão das minhas divisões e eles fazem o arranjo em cima delas. Por isso que é bom você contar com excelentes músicos criativos, sabe? Por que tem músico que não cria, só vai na água com açúcar. Pega a harmonia e pronto, vai tocando com a cifra, vai seguindo e não cria nada. Músicos criativos não, eles enriquecem seus arranjos.

O senhor tocou com uma banda compacta mas muito eficiente, os meninos da Filhos da Judith, Dadi, Billy Brandão...

EC: É mesmo, mas pô! Para de me chamar de senhor!

Ô, desculpe, é o costume!

EC: É respeito demais (risos)!  

Aquela canção ecológica do sr. e do Roberto é antiga? O senhor diz que não ouviram vocês falando de ecologia nos anos 1970 por que vocês falavam em português.

EC: Aquela música é de 74 ou 76, se não me engano. Mas aquilo que eu falo é uma ironiazinha, sabe, daquilo que eu chama de "complexo de vira-lata". Eu chamo, não. Eu acho que foi o Nélson Rodrigues que criou esse termo. É esse eterno complexo que brasileiro tem de achar que tudo que é (norte) americano é melhor. De seguir os americanos em tudo. Logicamente que é um povo espetacular, defensor de uma liberdade legal pra caramba, mas também é um povo prepotente e arrogante. E o Brasil tem essa mania de achar que tudo que é americano é lindo e maravilhoso, ao ponto de dar um valor exagerado, eu acho, às coisas americanas, em desprestígio das nossas. Isso me causa uma certa chateação. Então aquilo que eu falo é um pouco de ironia em cima disso. Quando o cara fala em português, ninguém presta atenção, pensa que é besteira, "o cara tá maluco" (risos). Aí o outro fala em inglês, tem outra seriedade.

A participação da Marisa Monte ficou maravilhosa. Vocês gravaram aquela música juntos, né?

EC: Fizemos e gravamos juntos. Aí era óbvio que a gente cantasse, por que nunca tínhamos cantado ela juntos ao vivo. Foi bonito, um momento marcante e registrou pra sempre nós dois cantando nossa música juntos.

Como todo grande artista o senhor tem várias facetas: tem o Erasmo roqueiro, o Erasmo romântico, o Erasmo comentarista social - em qual pele o senhor se sente mais confortável, mais Erasmo?

EC: Olha, eu acho que, desde que eu goste do tema, eu acho que eu sou eu, sempre. Quando o tema calha de um tema que possa fazer ele com humor, ih, eu fico muito feliz, eu gosto muito de usar a ironia, o humor, de deixar alguma coisa no ar para as pessoas pensarem, sabe? Por exemplo: "Dizem que a mulher é o sexo frágil". Não sou eu que estou dizendo – "dizem". Então já bota a responsabilidade pro outro, sabe? Eu gosto muito desse jogo, do comentário. Eu sou cronista. Me considero um contista, eu conto coisas da vida, vistas pelo meu foco.

Aquela introdução com o senhor falando disfarçado, como nos jornais da TV, foi uma sacada muito inteligente que fala do preconceito contra os roqueiros aqui no Brasil, uma coisa que até eu, que só tenho 40 anos, sofri nos tempos da escola, já nos anos 80. O senhor sofreu muito com isso?

EC: Claro, sofri muito preconceito! Era terrível, rapaz! Contando assim, nem dá pra transmitir o que era. Por que no início, tinha a religião contra (o rock). Chamava de coisa do diabo (risos), dizia que o demônio entrava nas pessoas, eram contra a dança, contra a música, o ritmo... Então tinha movimentos. Aí na Bahia, por exemplo, eu fui com Renato & Seus Blue Caps, quando eu era da banda, a gente foi em Itabuna. Fizemos uma excursão por Itabuna, Feira de Santana e Salvador. A gente cantou no (Clube) Baiano de Tênis e, porra, não teve um aplauso, cara!


  
Foi mermo?

EC: Imagine você, uma banda acaba de tocar e ninguém aplaude. A juventude queria dançar: as meninas, os rapazes. Mas os pais estavam junto e eles tinham medo, sabe? Era muito preconceito sobre tudo, os costumes. E o gênero (rock 'n' roll) libertou essas pessoas. O rock 'n' roll libertou a juventude toda, por que era uma juventude presa, escravizada aos gostos dos pais. Até no modo de se vestir, o comportamento... e claro que a música também, ouviam o que os pais ouviam, os cantores antigos como Silvio Caldas, Orlando Silva e outros. E no Estados Unidos era Sinatra, as big bands, Glen Miller. Antigamente, quando morria uma pessoa do governo eram três dias de luto, parava de tocar tudo quanto era música nas rádios tocava só música clássica (risos). Então a gente teve essa vivência, o rock 'n' roll era completamente marginalizado. Tatuagem também, qualquer coisa que exprimisse liberdade era mal vista. E começava em casa, era mal visto pelos pais e pela sociedade em geral. Então, quem vivia daquilo, daquele ritmo que estava surgindo, quem abraçou e dedicou àquilo, sofreu pra caramba.

Ver o senhor e Roberto Carlos juntos no palco já é emocionante para qualquer brasileiro, imagino como dever ser para vcs dois. Como é para o senhor? Respira fundo, ou tira de letra?

EC: Imagina pra nós! Mas é bonito, respira fundo, engole a lágrima, o abraço é mais forte, por que você vê além da sua alegria, a alegria do outro que também está feliz naquele momento. Roberto foi de uma generosidade, de uma entrega maravilhosa, foi inesquecível pra mim. E ele estava muito solícito, olha que a gente já cantou por vários anos nos especiais dele na televisão, mas ali ele estava diferente comigo, sabe? De repente era por que era o meu show, minha relização e ele estava apenas participando. A entrega dele foi total. Foi um Roberto como eu nunca tinha visto antes comigo. Embora já tivessemos cantado tantas vezes antes juntos.

É verdade, ele estava mais solto, mais à vontade.

EC: Era como se estivessemos cantando em casa, e nada foi combinado. Diferente dos textos que a gente recebe nos especiais dele, por que vem o texto antes, sabe? Aí a gente improvisa em cima de um texto. Lá (no Municipal) não teve texto. Foi que vinha na cabeça a gente falava.

Por que o senhor e Roberto não fazem um projeto juntos?

EC: Isso é meio impossivel, muita coisa, muitos interesses paralelos, editoras e gravadoras diferentes, é meio complicado. As pessoas me cobram muito isso. 'Faz isso', 'faz aquilo', mas tudo o que a pessoa pensa já foi pensado por mim. Eu já pensei em todas as pessobilidades possiveis e impossiveis de gravar disco, mas tudo tem sua hora, se tiver que ser é, na minha vida eu não forço nada, tudo o que acontece é porque tem que acontecer mesmo. A vida botou na minha frente, aí cabe a mim dizer sim ou não, com a responsabilidade de, de repente, dizer não a uma coisa que dá certo. Ou dizer sim a uma coisa que não deu certo. Isso é a sorte, mas eu não procuro nada, não forço barra nenhuma, não pertenço a grupo nenhum, panela nenhuma. Eu sigo simplesmente minha vida fazendo minha música, e o que tem que acontecer, acontece.

Por que Wanderlea não participou?

EC: Por que... ela não... (Para e pensa um pouco) Não fui eu quem fez as escolhas. Seria muito óbvio, sabe? Acho que queriam fugir do óbvio, botar pessoas da Jovem Guarda, fica aquela coisa, DVD da Jovem Guarda. Não é, cara. Também não convidaram um monte de artistas para participar, por que não foi uma coisa feita para o Municipal. Foi o último show da temporada do disco Rock 'n' Roll. Então a gente ia fazer o último show aqui no Rio. Poderia ser em qualquer casa de show. Mas de repente, surgiu o Municipal. Aí fizemos e a coisa cresceu. Aí minha produção convidou o Roberto Carlos e a Marisa Monte. Foi surpresa até pra mim quando me disseram, "Ih, o Roberto vai!". Eu fiquei "É mesmo?" "A Marisa Monte também!". "Pô, que genial", num sei o que. Quer dizer, não foi uma coisa feita para o Municipal nem para os 50 anos de Estrada. Foi o último show da temporada Sexo & Rock 'n' Roll, que calhou de ser no Municipal.

O senhor vai correr pelo Brasil com esse show do DVD?

EC: Já fiz a Bahia, inclusive, uma semana antes do Municipal. Agora devemos voltar, mas não fechamos data ainda, já fizemos Rio, São Paulo e Belo Horizonte e agora vou pro Rock in Rio Lisboa, na volta vamos pensar a estrada desse show do DVD. (Fala com alguém ao lado) Hein? Ah, eu fiz um show semana passada aí, na Costa de Sauípe. No não sei o que da Mata, foi um evento fechado para uma firma lá, no Hotel Ibero Star.

O senhor já tem planos para um próximo trabalho?

EC: Não, não tenho nada ainda, bicho. Tô na estrada e devo ficar nela por mais um ano, pelo menos. Depois penso em coisa nova.

A Coqueiro Verde está botando muita coisa nova bacana no mercado. O que senhor tem ouvido?

EC: Cara não tenho mais muito tempo, é muita musica, muita gente, muita informação. Se eu parar para ouvir todo mundo, não faço mais nada. Na Coqueiro é meu filho, Leo Esteves, quem comanda. Ele me manda uns suplementos, mas nem dá pra ouvir todo mundo.

Erasmo, é sempre um prazer falar com você.

EC: Pô, pra mim, também, que eu posso falar um monte de mentira e você acredita. (Risos)

Espero ouvir muito mais mentira do senhor, ainda.

EC: Tá bom, bicho! Obrigado por tudo e fica com Deus.

Erasmo Carlos / 50 Anos de Estrada Ao Vivo no Theatro Municipal / CD: R$ 19,99 | DVD: R$ 24,99

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